Relata um conto que um alfaiate esperto foi chamado por um rei
para que lhe fizesse as vestes. O alfaiate, então, costurou o ar, ao redor do
rei, perguntando-lhe o que achava. O rei, com uma mistura de vaidade, orgulho e
mesmo ingenuidade, concordou que sua roupa era digna de sua nobreza, embora ele
mesmo se visse nu ao espelho. Afinal, como o alfaiate malandro podia ver o
tecido, e ele, o próprio rei, não? Assim feito, chamou a corte e apresentou sua
nova roupa e mesmo desfilou pelas ruas, vestido de sua própria nudez. Muitos da
corte e da população também não admitiam que o rei estava nu, forçados pelas
próprias ilusões e ignorância. Quando vejo nosso rei do futebol, na televisão,
usando a camisa que tornou sagrada, em nome da indústria de agronegócios do
Brasil, me sinto como alguém que vê o rei nu e ridicularizado. Lamento que
muitos brasileiros acreditem na farsa e vejam o rei vestido. Talvez estes
anunciantes tivessem que ter um pouco mais de pudor. Afinal, a indústria de
armas não anuncia na TV que a venda de mísseis e carros de combate aumenta a
receita do país, muito menos chama o Fittipaldi para pilotar um helicóptero.
A
venda de soja e milho transgênico aumentam a receita do pais, verdade. Mas a
que custo? Para que este modelo agrícola se constitua, estamos esgotando nossas
reservas hídricas. As monoculturas se tornaram a regra, e, para manter este
deserto verde artificial, bilhões de litros de água jorram, bombeados por
máquinas violentas. A visão é quase a de um fenômeno natural, um gêiser ou uma
cachoeira. Mas é uma máquina, uma não, milhares dessas máquinas, criando uma
chuva artificial, drenando riachos, lagos, lençóis freáticos e esgotando nosso
recurso natural mais valioso na frente de nossos olhos. A mata atlântica, o
cerrado e a Amazônia vêm sendo mutilados sem a menor piedade. Para que a soja
brasileira alimente os porcos da Dinamarca. A mídia e os jornais nos fazem
acreditar que a coisa está melhorando. Melhorando como? A concentração de
terras na mão de poucos só aumenta. Mais agricultores familiares estão sendo
despejados. Antes, o despejo dos "vassalos" era sumário, bastava
expulsar, mas hoje tornou-se oficializado. O pequeno agricultor massacrado fica
sem produzir, quebra, não tem mercado para escoar sua pequena produção, se vê
falido. Doente e sem perspectivas, vende sua terrinha por uns trocados – ou,
usando a moeda agrária, alguns sacos de grãos – e vai engrossar o cinturão de
pobreza das grandes cidades, cada vez mais inchadas. Por que São Paulo está
matando 111 por semana?
Curioso: o número 111 regressa, vinte anos depois.
Foram também 111 os massacrados no Carandiru. Mas agora são policiais, jovens,
trabalhadores e traficantes, tudo junto e misturado. Coincidência? Sinal dos
tempos? Nada disso! A coisa começa nos campos, na desigualdade produtiva, de
escoamento dos produtos, no esmagamento do homem do campo pela máquina do
agronegócio. Florestas e nascentes desaparecem em um monte de entulhos,
esmagadas por máquinas semelhantes a tanques de guerra, para que surja um "reflorestamento"
de eucaliptos. Mesmo no interior – diga-se de passagem, no interior do rico
Estado de Sao Paulo – cada vilarejo já dispõe de sua miséria, seus
desempregados, usuários de drogas e traficantes. São ainda a primeira geração
perdida de filhos de agricultores que perderam o sentido de suas vidas. Se isso
ocorre no estado mais rico, o que se dirá do restante do país? Pois este modelo
só pode dar sequência a uma rede do mal, nunca a um círculo virtuoso. Esta
especialização do modelo agronegócio esmagador da sociedade agrária original se
perpetua nas faculdades de agronomia, formando tecnocratas frios que são
capazes de escoar a produção de agrotóxicos das indústrias químicas e
despejá-los sobre os nossos alimentos. O mesmo ocorre com os transgênicos, cada
vez mais banidos das lavouras do mundo e em escala crescente geométrica no
Brasil.
A senadora Cátia Abreu aparece no mesmo anúncio, vestindo
despudoradamente a camisa da seleção brasileira. A mesma que aparece no filme
"O veneno está na mesa", de Silvio Tendler, afirmando: "o pobre
tem que comer com agrotóxicos sim...". O Brasil é o maior usuário de
agrotóxicos do planeta, relacionados a todos os tipos de câncer. Mas o lado
"agro" do ensino médico, a indústria de medicamentos, lava as mãos.
Nossos alunos de medicina saem da faculdade ignorando a toxicidade destes
pesticidas. Não causa espécie que o anúncio televisivo use o nosso ingênuo rei
para vestir a camisa que tanto honrou nos campos. Na verdade, se os
patrocinadores agroindustriais colassem seus nomes na camisa, mal se poderia
ver o amarelo. Podemos não ter o mesmo poder midiático e a mesma grana que
esses alfaiates mas escrevo estas linhas na esperança de que cada vez mais
brasileiros possam entender que o rei está nu.